sexta-feira, 19 de abril de 2013

A tomada do Congresso Nacional pelos índios brasileiros


A tomada – mesmo que só por meia hora e sem derramamento de sangue – do Congresso Nacional pelos índios brasileiros foi um evento extraordinário, pelo inesperado, pelo impetuoso e pelo atrevido. Tanto para os índios, que sempre viram aquele recinto como um baluarte de poderosos engravatados, quanto para os parlamentares que o veem como seu santuário de honorabilidade. Os índios o tomaram em chacoalhares de guerra, impelidos pelo sentimento de revolta com os modos com que as eminentes autoridades os estão tratando e pela urgência do fazer agora; os parlamentares, de início embasbacados de susto, logo impuseram sua prerrogativa de templários da democracia e os mandaram sair incontinenti, como se dissessem, “aos índios tudo, menos nossa tranquilidade”.

Já a distinta opinião pública sufocou-se de sentimentos contraditórios, como é de seu feitio em relação à questão indígena brasileira: se, por um lado, admira o destemor dos mais humilhados dos brasileiros, por outro, deplora a visível algazarra e a intempestividade do evento. Réstias de imagens de agressividade indígena saem do fundo de suas mentes e se transformam em sentimentos de pavor e ojeriza anti-indígenas.

Para o movimento indígena (incluindo o movimento socioambientalista, ONGs e religiosos) que programou esta Semana do Índio, a qual se capitaliza hoje, com tantos eventos comemorativos e/ou blasfematórios pelo Brasil inteiro, a tomada do Congresso Nacional foi festejada com um misto de alegria e apreensão. O movimento sente que chamou atenção para a causa indígena do modo mais ousado possível, por aparentemente não haver outro mais racional, mas também sabe que pode vir troco.

O distinto público há de se perguntar: “Por que os índios estão tão zangados?” Certamente se lembrará que nos últimos anos a revolta contra hidrelétricas, especialmente Belo Monte, está no topo da impaciência indígena. Talvez não se lembrem mais que em 2010 mais de 400 índios passaram seis meses em frente ao Ministério da Justiça protestando contra um decreto administrativo que, entre outras coisas, extinguia os antigos e sólidos postos indígenas, como representação do Estado na proteção e assistência das aldeias indígenas. Nunca lhes foi dada uma explicação razoável, a não ser que o posto indígena era uma instituição retrógrada, da época de Rondon, como se para os índios tão acusação tivesse a mesma negatividade que tem para antropólogos e ambientalistas que querem o fim do indigenismo rondoniano. Nas terras indígenas, onde vive a grande maioria dos povos indígenas, inclusive muitas das lideranças presentes, a Funai sumiu e com isso os índios se sentem constrangidos a apelar para vereadores, prefeitos, fazendeiros, madeireiros ou garimpeiros, sem falar em missionários, para o mínimo de suas necessidades de urgência, algo que não acontecia no Brasil desde 1910. São os novos indigenistas brasileiros.

Entretanto, a pièce de résistance da revolta indígena vem da contrariedade a um projeto legislativo, conhecido como PEC 215, que visa mudar a Constituição para retirar do Executivo, i.e., a Funai, a prerrogativa exclusiva de reconhecer e demarcar terras indígenas, passando-a para o Legislativo, i.e., os ilustres parlamentares.

Mudar a Constituição não parece difícil hoje em dia, nem tampouco o é retirar direitos nela consagrados. Porém, há que se convir, por que os parlamentares haveriam de se dispor a roer um tão duro e reprovável osso, qual seja, transformar o Congresso Nacional em balcão de negociação de terras indígenas, sem que tenha gosto nem condições administrativas para tanto?! Só para contentar os ruralistas? Ou para chatear os índios e o movimento indígena?

Difícil achar que a PEC 215 valha tanto esforço. Difícil achar que haveria razão para tanto. O que me parece mais razoável é que os parlamentares que assinaram essa PEC queriam mais provocar o Executivo para arrefecer as demarcações, por um lado, e provocar o movimento indígena, por outro. Conseguiram. A PEC 215 vai encalhar por aí, sem razão constitucional nem tampouco viabilidade administrativa, e o Congresso sabe disso.

Enquanto isso, quem pegou corda com essa provocação está deixando de lado o essencial do que estão vivendo os índios: o arrefecimento da simpatia por parte da opinião pública, a diminuição da responsabilidade do Estado para com suas vidas e sua ascensão no panorama político-cultural brasileiro, com uma Funai se apresentando inerme e incapaz de resolver os atritos entre o desenvolvimentismo nacional e os interesses indígenas, e o desvio de todo o esforço político indígena para lutar contra um fantoche.

A quem interessa isso tudo?

*Mércio Pereira Gomes é antropólogo (Ph.D. University of Florida, EUA, 1977), professor do Programa de História da Ciência, das Técnicas e da Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-presidente da Funai, autor dos livros "Os Índios e o Brasil", "Antropologia Hiperdialética", "Antropologia", "O Índio na História", "The Indians and Brazil", "Darcy Ribeiro", e "A Vision from the South".

http://br.noticias.yahoo.com

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